Ninguém é Rei Por Acaso

Independente da área de atuação, poucas pessoas têm a oportunidade de aprender recebendo ensinamentos e lições diretamente dos grandes mestres. Raros os que têm a chance de encontrar e conhecer pessoalmente um artista criador que é ícone da arte que representa.

Recentemente, tivemos o prazer de receber no Brasil, num evento especial iniciativa do Núcleo Conexión Caribe de Cultura Latina, organizadores do Congresso Mundial de Salsa do Brasil e Semana da Cultura Latina , aquele que é considerado o melhor e mais importante professor e dançarino de salsa de todos os tempos, o norte-americano Eddie Torres.

Nascido e criado no “Spanish Harlem”, o bairro latino de Nova York, Eddie, que é filho de pais porto-riquenhos, viveu sua juventude nos salões latinos mais famosos da cidade, conviveu de perto com os principais músicos e orquestras de mambo que revolucionaram esse ritmo, e com dançarinos que criaram passos copiados até hoje. Ele mesmo criou, há muitos anos, vários dos passos e figuras que professores de todas as partes do mundo, formados por ele, ensinam nas suas aulas e utilizam em suas coreografias, além de ter sido o primeiro a “codificar” e criar um método para ensinar e propagar a dança.

Eddie Torres com os diretores do Conexion Caribe, Ricardo Garcia e Douglas Mohmari

Hoje, aos 62 anos e em plena atividade, Eddie Torres é conhecido internacionalmente, e merecidamente, como “The Mambo King”, título que divide com outro grande mestre e ícone, esse na música, Tito Puente. Conhecendo Eddie pessoalmente, ouvindo suas lições, fazendo suas aulas e, principalmente, vendo-o dançar, entendemos o porquê.

A experiência de conhecê-lo de perto foi tão impressionante, que resolvi compartilhar neste artigo alguns ensinamentos contidos nas sábias palavras deste que, muito mais do que um grande artista, é também, e principalmente, um extraordinário ser humano. Lições muito valiosas para aqueles que buscam se aprimorar como dançarinos e artistas de salsa, ou mesmo para aqueles interessados em conhecer mais de perto esse universo tão rico e extraordinário.

Sobre dança e sentimento:

Esse é seguramente o maior diferencial no trabalho de Eddie Torres. A maneira como ele encara a dança e o sentimento por ela como requisito fundamental para um grande dançarino.

“Uma coisa que eu sempre digo é que, sim, a dança é uma coisa da mente. Porém, para mim, é uma coisa muito mais da alma e do coração. É o sentimento de um dançarino. Não é apenas saber passos e movimentos. Aqueles que dançam com a alma e com o coração, e que têm o fogo e a paixão dentro de si, é que são e serão, sempre, a expressão maior da arte de dançar.”

“Às vezes as pessoas pensam: ‘eu sei muitos passos, eu sei muitos giros e muitas figuras’. Eu brinco e digo que isso não significa que você vai ser um dançarino fantástico. Agora, se quando você dança as pessoas dizem ‘ai…’, te sentem, e você consegue transmitir emoção, porque você dança com o coração, aí significa que você nasceu com algo especial.”

“Eu fico muito mais feliz quando vejo gente que está se divertindo com a dança, mesmo fazendo coisas simples, do que alguém que está fazendo coisas complicadas ou dando 20 mil voltas. Porque o que busco é algo que venha da alma de cada um.”

“A mente é uma coisa muito importante, mas para mim, quando não podemos pensar, aí sim dançamos melhor. Quando a mente se apaga e nos deixamos levar pelo sentimento.”

Sobre formação e aprimoramento:

Incentivado por sua grande mestra de ballroom dance, June Laberta, que muito influenciou a carreira de Eddie como professor, ele declara ter percebido também a grande importância de conhecer a parte teórica do gênero e os conceitos musicais como ritmo, harmonia e melodia, que fizeram toda a diferença na qualidade do seu trabalho como professor e dançarino.

“Quando jovem, eu ia todas as noites aos salões onde tocavam as grandes orquestras de mambo, e observava muito os grandes dançarinos da época para tentar aprender seus passos e seu estilo. Mais tarde, comecei a criar meus próprios passos, muitas vezes inspirado em outras danças ou artistas que admirava, até criar meu próprio estilo.”

“Quando comecei a dar aulas, percebi a importância de entender e codificar o que aqueles dançarinos extraordinários faziam na pista, para que pudesse ser ensinado a outras pessoas. Acabei criando um método para o ensino do mambo que utilizo até hoje, e que serve de referência a inúmeros professores por todo o mundo.”

Sobre objetivos e dedicação:

Coincidência ou não, Eddie Torres e Tito Puente, os Reis do Mambo respectivamente na dança e música, nasceram no mesmo hospital, em Nova York. Quando Eddie começou sua carreira Tito Puente já era o principal artista e diretor de orquestra de mambo.

“Nos anos 50 e 60 não havia o mercado que há hoje para se trabalhar com dança, mas eu, ainda jovem, dizia à minha mãe: ‘quero ser um dançarino profissional. Eu acredito que nasci para fazer isso, acredito que serei um pioneiro nisso. E quero dançar com Tito Puente’. Ela não acreditava, me achava louco. Hoje, é minha fã número 1 e me diz acreditar que eu tinha um propósito na vida, designado por Deus. ‘Você nasceu com um dom especial para dançar, assim como Tito Puente nasceu para fazer música’, me diz ela. E não tenho dúvida nenhuma que nasci para isso”.

Sobre a parceria com Tito Puente:

“O primeiro show meu e de minha esposa e parceira de dança Maria Torres com a orquestra de Tito Puente foi em 1979. Desse ano até o ano 2000, quando o maestro faleceu, estivemos ao seu lado, dançando em todos os espetáculos. Viajamos para vários lugares e tivemos o prazer de nos apresentar para várias pessoas. Quando me perguntam qual foi o ponto mais alto da minha carreira, a resposta é fácil: estar ao lado e bailar com Tito Puente.”

Sobre humildade:

A primeira coisa que chama à atenção em Eddie Torres, a despeito de sua fama e seu reconhecimento internacional como grande artista, é sua extrema simpatia, respeito e amabilidade com todos, não deixando nunca que a vaidade, uma característica natural de todo artista, se transforme em arrogância ou soberba.

“Hoje em dia, dou muita risada, quase todos os dias, com certos tipos de dançarinos que vejo nas casas noturnas e nos bailes. Não devem saber dançar, pois passam a maior parte do tempo parados num canto, com nariz empinado, muitas vezes de óculos escuros, se recusam a dançar com quem não sabe. O que é isso? Que orgulho é esse? Para quê essa arrogância toda? Só pode ser alguma doença. Somente estamos dançando amigos. Não estamos inventando foguetes para a Lua, nem a cura para o câncer, não somos seres superiores a ninguém.“

Sobre respeito à dama e elegância:

É nítida a postura e preocupação do “maestro” em sempre valorizar o papel da dama na dança a dois. Em todas as aulas ou apresentações, procura a todo o tempo ressaltar a importância de sua parceira. Aliás, ele trabalha com pelo menos quatro parceiras fixas em diferentes partes do mundo, além da esposa, Maria, com quem divide a administração de sua escola em Nova York.

“Se um homem quer que sua dança seja bonita, ele deve fazer com que a dança da sua dama seja muito mais bonita. Acho, além de feio, bastante deselegante, para dizer o mínimo, um dançarino quando quer aparecer mais do que a sua dama. Chega a ser ridículo o que fazem muitos dançarinos de salsa, simplesmente abandonando sua dama durante a dança, para fazer solos, shines ou abusar dos movimentos soltos, sem se importar com a parceira. Dance para ela, faça com que ela brilhe, com que ela se destaque. Aí sim você será um dançarino que as pessoas irão admirar ver dançando. E mais do que isso, um dançarino com quem as damas vão adorar dançar”.

O Rei do Mambo conduzindo Shani Talmor em apresentação no Festival de Salsa de Quebec 2012

“Eu acho que o homem tem sempre que dançar para sua dama, olhando para ela, se relacionando com ela. Eu busco isso o tempo todo. Mesmo nos shows, onde é mais comum que os artistas olhem para o público, eu prefiro olhar para ela e dançar com e para a minha dama.”

Sobre o crescimento da salsa e o papel dos professores e dançarinos:

“Penso que o caminho para o desenvolvimento da salsa e o crescimento do interesse das pessoas por ela é muito fácil. Por parte dos professores, fazer com que as aulas e o aprendizado sejam algo que os alunos possam entender. Acho que vivemos uma geração de complicações e muitas pessoas parece que preferem ser complicadas. Em minha experiência como professor aprendi que os alunos gostam do que é simples e do que eles se imaginam capazes de fazer. É muito comum meus alunos dizerem: ‘mestre, não apenas aprendi com você hoje, mas me diverti. Sua forma de ensinar não é uma forma complicada’. Respondo sempre que não posso ser complicado porque não tenho essa formação. Porque sou um homem simples. Os alunos não vão para aulas de dança para se estressar mentalmente. Mas quando veem algo que parece ao mesmo tempo gostoso e simples, dizem: ‘uau! Isso parece fácil, eu quero aprender!’”

“Minha professora e grande mestra June Laberta, me disse uma vez: ‘Eddie, quando se tornar um professor lembre-se sempre de, antes de todas as suas aulas, olhar para o espelho e repetir para si mesmo a palavra “Kiss” (em inglês “beijo”)’. E eu perguntei confuso: ‘Kiss? O que significa isso?’. Ela explicou: ‘Essa palavra, para você, como professor, significa: Keep It Simple, Stupid! (Mantenha a simplicidade, estúpido!). Mantenha seus ensinamentos simples!’. As pessoas vêm para aula para aprender, para se divertir. O aluno precisa chegar em casa depois de uma aula pensando: ‘uau! Gostei muito da aula porque o professor me fez feliz, fez com que eu me divertisse! A coisa foi simples e eu consegui compreender’. Esses são os melhores professores. Os que sabem transmitir com simplicidade. E fazem da sua aula algo que desperte o interesse do aluno.”

“Outra coisa é a imagem que passamos. Se estamos nos divertindo enquanto dançamos, isso é contagioso para quem vê e faz com que as pessoas queiram aprender. Se é muito complicado e difícil fica a impressão de estressante, as pessoas dizem: ‘isso é muito complicado, não quero’”

Sobre fama e sucesso:

Eddie Torres com a esposa Maria, em apresentação no World Salsa Open 2008

“Hoje em dia, algumas pessoas me dizem: ‘Eddie, queremos propor uma parceria para abrir uma escola com seu nome, queremos uma sociedade com vc’. Eu digo, não, não. Não quero tanto trabalho assim. Eu sou um homem que vive uma vida muito simples. Vivo em um condado em Nova York conhecido como Bronx e não tenho muito dinheiro, porém sou um homem muito feliz. Porque para mim, o dinheiro não é mais importante do que eu poder usufruir o tempo que eu tenho usufruído tantos anos com minha bela esposa e com minha família, vivendo uma vida simples. Eu sei que a fama é uma coisa muito bonita e sedutora, mas isso não é o mais importante para mim.”

“Com frequência me perguntam como me sinto com essa coisa de título de ‘rei do mambo’ e eu dou a mesma resposta que sempre dava Tito Puente: ‘Eu não me importo. Desde que não me chamem de rainha, está tudo bem’.”

Sobre o futuro:

“Não faço muitos planos para o futuro. Aprendi a viver cada dia de uma vez. Dou graças a Deus por cada dia e cada momento que vivo. A vida não está prometida a ninguém e pode acabar-se a qualquer momento, para qualquer um. Essa é minha forma de vida. O que espero agora é passar esse momento com vocês, aqui no Brasil, da melhor forma possível. E amanhã, poder estar com minha esposa mais uma vez. Assim vou vivendo, procurando fazer cada dia melhor do que o anterior.”

Para quem sonha se tornar um profissional:

“Em primeiro lugar buscar dentro de si mesmo e responder honestamente se acredita mesmo ter o dom, o talento para isso. Cada um nasceu com um talento especial e precisamos descobrir qual é. Eu mesmo já disse a minha esposa que gostaria de cantar como Luis Miguel, mas meu dom não é esse, é a dança!

Busque um, ou mais de um grande professor. Faça o máximo de aulas e aprenda com os melhores, o máximo que puder.

Depois disciplina. Ninguém alcança o sucesso apenas sonhando. É preciso disciplina, trabalho e muita dedicação, todos os dias. Estudar e aprender sempre.

Em resumo: talento, um bom professor, dedicação e, sobretudo, humildade.”

Obrigado ao mestre!

Ricardo Garcia com Eddie Torres e sua parceira na passagem pelo Brasil Shani Talmor

Como dançarino, professor, produtor, pesquisador e, sobretudo, um grande apaixonado por salsa e cultura latina, posso dizer que ter conhecido e convivido um pouco com um artista tão extraordinário foi uma das experiências mais marcantes e transformadoras dessa minha trajetória pelo universo da dança e dos ritmos latinos. Entre tantos momentos especiais, um ficará marcado para sempre na minha memória, o olhar de espanto e o abraço carinhoso que o “maestro” me deu, ao saber que ambos fazemos aniversário no mesmo dia, 3 de julho. E suas palavras, quando lhe contei: “eu logo vi que você era uma pessoa especial, agora sei o porquê!”. E para completar meu orgulho ainda emendou: “Somos três, então. Há outro grande salsero que também nasceu no mesmo dia que nós: Cheo Feliciano!”. Assim é Eddie Torres.

Fotos: Jim Da Vo/I Shoot Salsa, Callejero e divulgação World Salsa Open

(Ricardo Garcia – originalmente publicado no portal Dança em Pauta )

 

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